sábado, 9 de agosto de 2014

O DIA EM QUE SAM - DA IMPORTÂNCIA DE SER RUEIRO

Cena da peça "O Dia em que Sam Morreu"

G1 - Globo Teatro
03/06/2014

Artigo: ‘O Dia em que Sam Morreu’ ou da importância de ser ‘rueiro’
O autor Maurício Arruda Mendonça destaca a força das ruas na dramaturgia


Rua do Lavradio, além da esquina da Rua do Senado. Meio da tarde. Brisa forte aliviando o calor. Uma mulher pequena e arretada, cútis cor de cobre, cinquenta e poucos anos, no celular, dizendo, em voz alta: “ – Deixa eu falar, f.d.p.! Eu sou uma mulher vivida! Me escuta! Amor é liberdade!” Eu meditava sobre as palavras daquela mulher, palavras sem refinamento, mas que encerravam verdades em sua poesia rude. Pensava na beleza de cenas assim tomando uma gelada num boteco da André Cavalcanti – aliás, rua machadiana, antiga Silva Manuel. De fato, praticando a arte de andar a pé podemos ter experiências extraordinárias, e também ordinárias. Com um copo a mais, diria, até mesmo, sobrenaturais, como ocorreu naquela vez em que eu saía da lúgubre Igreja do Santíssimo Sacramento, na Avenida Passos. E eis que uma senhora de seus setenta e tantos anos, portuguesa, me intercepta no último degrau. Ela perguntava onde ficava a Rua Visconde do Rio Branco. Eu disse que estava indo naquela direção, que ela me acompanhasse. Próximos à Rua Luís de Camões, a senhora disse que estava recordando a região porque frequentava os sebos de livros no tempo em que suas filhas estudavam: “Comprava livros mais baratos. Precisava economizar muito na época.” Quando cruzamos a praça, perto da estátua da Justiça, perguntou-me quem era o homem montado no “cavalão”. Eu disse a ela que era Dom Pedro I, e acrescentei: “Esse é monumento equestre mais antigo do Brasil.” Ao que ela retrucou, com seu sotaque lusitano: “Não podia saber. Não é do meu tempo.” Eu ri. Nós rimos. Rápido estávamos na Visconde do Rio Branco. Ela me disse um número qualquer. Eu apontei a direção. Ela me agradeceu. Por fim, disse: “Que o anjo te acompanhe.”. Deixei-a prestes a atravessar a rua. Andei alguns passos e olhei para trás. Ela não estava mais lá. O tempo não era suficiente para ela ter atravessado. Olhei na outra calçada: nada. A senhora havia desaparecido. Eram três horas da tarde de sol abrasador.
Sentados na calçada do Jato Bar, eu e o parceiro e mestre Paulo de Moraes. Paulo refletia sobre a questão do poder, o que ele significava hoje em dia. Falava a respeito de Macbeth, da visão de Shakespeare sobre o poder. Foi quando as manifestações de junho do ano passado aconteceram. Num piscar de olhos estávamos vivenciando os fatos e as notícias, discutindo ideias com o ator Jopa Moraes, tantas pensamentos suscitados pelos impulsos do nova peça a ser escrita, somados aos acontecimentos das ruas. As reflexões para o espetáculo O Dia em que Sam Morreu começaram a fervilhar. Quem são esses que estão nos lugares do poder? Poderiam ser um médico, que decide sobre vidas; uma juíza que decide sobre a liberdade; um artista que nos enebria com sua comicidade? Qual o alcance e resultado desses poderes submetidos aos dilemas extremos, ao limite entre a vida e a morte, à ação mais inescrupulosa? Queríamos falar de tudo isso com uma poesia crua, sem lirismo, mais adequada ao desmascaramento das realidades de bom-tom convenientemente construídas. O personagem diz aquilo que é. Defende pontos de vista. Usa toda a força de que dispõe. Mas sem justificar suas ações freudianamente ou representar realisticamente os “desvãos da alma humana.” Buscávamos um texto que propusesse uma discussão franca e honesta com o público sobre o que acontece hoje. De que forma poderíamos expressar um assunto tão complexo como o poder na contemporaneidade? Isso poderia ser chamado de peça política? Sim, mas o teatro é uma arte essencialmente política. Mas acertado seria pensar em O Dia em que Sam Morreu como uma peça de ideias. Paulo achava que uma sucessão de reinícios poderia ser a síntese entre o conteúdo e a forma do nosso drama. Era o que a Armazém tinha urgência de compartilhar. Mas isso tudo foi depois.
Antes eu me encontrava no boteco da André Cavalcanti – rua cujo asfalto mal consegue esconder os trilhos do bonde do passado – eu seguia recordando o escritor João Antônio, cogitando sobre a importância de ser rueiro, bater perna pela cidade, ouvir, ver, conhecer as pessoas nos relances de seus dramas. E chegava a uma conclusão: qualquer acontecimento nas ruas do Rio de Janeiro adquire imediatamente uma importância histórica. Efeito das ideias, dos sonhos, da indignação, da fome de justiça, certamente. Mas efeito também das pedras dos calçamentos, dos largos, das praças, dos monumentos, dos lugares atávicos da população, das disposições únicas no corpo da cidade. Com dois copos a mais, eu já até cunhava uma frase de efeito: “Não se grita ou se revolta sem paisagem, sem arquitetura!”.
Mesmo assim, só agora é que fui perceber que em O Dia em que Sam Morreu está presente na personagem da juíza Samantha, a indignação daquela mulher falando de liberdade e amor que cruzei na Rua do Lavradio. Só agora percebo que em Sam a personagem da garota de programa Sofia poderia ser o anjo da alegria de que me falara aquela senhora portuguesa que se evaporou na calçada da Praça Tiradentes. Onde estarão essas pessoas? Gostaria que elas passasem pela Lapa pra ver nosso espetáculo.


Maurício Arruda Mendonça
é dramaturgo da Armazém Companhia de Teatro

Fonte: http://redeglobo.globo.com/globoteatro/artigos/noticia/2014/06/artigo-o-dia-em-que-sam-morreu-ou-da-importancia-de-ser-rueiro.html

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