sexta-feira, 2 de maio de 2014

O DIA EM QUE SAM MORREU - RESENHAS CRÍTICAS


O ator Jopa Moraes no papel de Samuel.


REVISTA CULT 

O que ainda mantém o homem vivo?

"O dia em que Sam morreu" empenha o vigor que a palavra pode exalar no teatro para tratar da obsolescência do homem
POR WELINGTON ANDRADE
Foto: João Gabriel Monteiro
“Quem não pretende um Éden terreal?
Mas e as circunstâncias, afinal?
Elas se negam a corresponder”.
Bertolt Brecht, A ópera de três vinténs.
Escrito por Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, o texto de O dia em que Sam morreu– o mais recente espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, em cartaz no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação – trata, de acordo com as palavras do próprio grupo, “da sensação geral de que algo não vai bem”, transformando uma questão fugidia e espinhosa como essa em um jorro de sinceridade dramatúrgica das mais envolventes na atual temporada teatral paulistana. O que de início chama a atenção é a grande capacidade que a peça tem de olhar para um conjunto de assuntos que vem assolando nossa famigerada consciência crítica, de um modo absolutamente direto, franco, sem falsos dilemas. O texto – denso, articulado, penetrante – recusa qualquer tentativa de soar engenhosamente isento, asséptico, frio em suas reflexões bem-pensantes. Antes, ele opta por mexer e remexer no senso comum que nos paralisa para, a partir desse estado de indignação um tanto quanto letárgico do qual dificilmente conseguimos nos livrar, ir nos comunicando aos poucos a ideia de ser possível desenvolvermos um sentimento de vibrante reação a tudo o que está aí. Mas não aquele tipo de reação moralista que invariavelmente deságua na “indignação farisaica” de que nos fala o professor Antonio Candido. Certamente que não. A criação dramatúrgica de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes nos convida a reagir contra o esgotamento da cota de humanidade que se pensava infindável no homem pela via de uma perplexidade embrutecida, sofrida, dolorosa, sim, mas tingida sutilmente pelas cores do lirismo e da esperança.
Em tempos desencantados como os nossos, em que uma mentalidade mediana – vaidosa por ser assaz pragmática e combater tão “inteligentemente” as velhas ideologias – insinua-se em todas as esferas do convívio social, tendendo a sublimar a vida real por meio de uma franca tendência à abstração e ao absoluto, O dia em que Sam morreu apresenta a grande capacidade de confrontar o espectador com uma série de indagações com as quais ele se depara normalmente, levando-o a examiná-las de acordo com uma inteligência e uma sensibilidade francamente autônomas, cultivadas por seu próprio espírito crítico – nobre tarefa à qual o bom e velho teatro ainda é capaz de se lançar. Isto é, texto e encenação nos fazem acreditar que o fenômeno teatral constitua ainda um poderoso processo que leve o espectador, atravessado pela experiência da cena, a se tornar membro de uma sociedade de homens que sintam e pensem mais e melhor.
O foco da peça são algumas das transfigurações pelas quais tem passado o corpo humano na “sociedade industrial-gerenciada” em que nos transformamos, “de natureza essencialmente burocrática e motivada por um materialismo apenas levemente mitigado por preocupações verdadeiramente espirituais ou religiosas”, de acordo com o diagnóstico de Erich Fromm emThe sane society. Assim, o texto põe em cena seis personagens muito bem construídos às voltas com dilemas existenciais e éticos surgidos a partir da relação dissociada que eles estabelecem, em maior ou menor grau, com seus corações e com suas mentes. Ou com o coração e a mente dos outros. Para dois deles, órgãos vitais estão parando de funcionar: o coração da juíza aguerrida e o cérebro do velho palhaço. Já o coração e a mente do jovem instrumentador cirúrgico se excitam demais, a ponto de quererem levá-lo a cometer um ato extremo, “cheio de som e fúria”. Para a garota de programa que é filha de um clown demente – o corpo servindo a ambos como instrumento, para ele, lúdico; para ela, lúbrico –, os homens estão aos pedaços. Por fim, há os dois médicos que, embora muito seguros e articulados, não costumam encarar a vida o tempo todo de cara limpa. Um, deslizante entre dois afetos. O outro, sempre crispado diante do novo e lúcido cinismo que acomete a plenos pulmões aqueles que transitam com invejável desenvoltura por estruturas de mando e de poder.
Foto: João Gabriel Monteiro
A direção de Paulo de Moraes consegue com notável inventividade converter as ideias que fervilham no campo dramatúrgico em símbolos de uma teatralidade das mais rascantes, acentuada de modo todo especial pela trilha sonora executada ao vivo. Tudo leva a crer que a palavra falada hoje, proferida em ambiente acusticamente harmonioso, esteja fadada ao fracasso por demandar de nós um tipo de concentração do espírito que não nos diz respeito mais. Assim, as falas dos atores precisam constantemente ser emitidas em ambiente sonoro distorcido e amplificado, a fim de se relacionarem com o modo usual da cognição contemporânea. Errática diante daquilo que consegue comunicar e contaminada por um estado permanente de espanto, a palavra aqui precisa se deixar acompanhar pela pulsão do rock. Não é inadequado afirmar, então, que O dia em que Sam morreu se configura em um recital ruidoso, alvoroçado, desarmônico.(Convém destacar na condução dessa atmosfera tão especial o ótimo trabalho dos músicos, liderados pelo maestro Ricco Vianna).
Os atores da Armazém Companhia de Teatro desempenham seus papéis com uma tensão criativa que plasma muito bem seus corpos (a preparação corporal é de Frederico Paredes e Rafael Barcellos) e suas vozes (Jane Celeste Guberfain é a responsável pela preparação vocal). Jopa Moraes constrói o instrumentador Samuel de modo muito convincente ao transformar a retórica um tanto quanto cerebral do personagem em expressão de pura enervação. Patrícia Selonk confere a Samantha uma intensidade dramática notável. Trata-se de uma atriz a quem Dioniso parece jamais abandonar em cena. Como juíza, saem de sua boca asseverações éticas incontestáveis; como uma mulher alquebrada pelo coração em processo de falência, sobram-lhe dúvidas, potencializadas pela máscara patética. Marcos Martins imprime ao ex-palhaço Samir uma aura de comicidade construída por meio de um pungente lirismo.O intérprete domina com rigor a execução física do personagem, sabendo explorar muito bem suas nuances burlescas, poéticas, ridículas. Otto Jr. transforma o Dr. Benjamin em uma figura fascinante – detestável pela arrogância que o afasta de nós, atraente pelo pragmatismo que nos aproxima dele. Lisa Eiras empresta uma carga de sensualidade muito bem calibrada a Sofia, explorando diversos matizes em sua interpretação que afastam o risco de a personagem se cristalizar em um tipo. Por fim, Ricardo Martins se desincumbe muito bem do Dr. Arthur, conferindo-lhe uma empatia muito natural, seja por ele soar bastante razoável, seja por demonstrar ter um bom coração – que, inclusive, o faz interceder tão naturalmente a favor de engenheiros presos e juízas doentes.
A cenografia, concebida pelo próprio diretor, em parceria com Carla Berri, é simples e funcional, transformando constantemente o palco em um espaço de dispersão – o que potencializa os constantes focos de tensão. A iluminação de Maneco Quinderé pontua muito bem a atmosfera confessional a que se lançam os atores com acento expressionista, contrastada, por sua vez, pelos figurinos naturalistas concebidos por Rita Murtinho. Os bonecos confeccionados por Ulisses Tavares e Paulo Emílio Luz, que reproduzem corpos humanos fora de combate, têm um poder de sugestão sobre a cena dos mais impressionantes. Idem para as máscaras macabras dos palhaços que acompanham o enterro de Samir, responsáveis por uma plasticidade aflitiva e inquietante. Sem sombra de dúvida, essa é a cena mais bela do espetáculo. Se o conceito de beleza puder corresponder também à expressividade plástica do fantasmagórico e do grotesco, como, por exemplo, em Goya.
Foto: João Gabriel Monteiro
A estrutura cíclica de O dia em que Sam morreu – a peça aponta para um novo começo a cada vez que um dos “Sam” morre – está ligada mais propriamente ao universo do mito, de onde emerge por duas vezes em cena a figura de Abraão, o patriarca das três grandes religiões monoteístas, incumbido de estabelecer a aliança entre o mundo terreno e a esfera divina. Entretanto, essa camada mítica no plano da dramaturgia (com quem o super-homem pós-moderno há de firmar uma nova aliança? que novas normas morais e políticas estão sendo instituídas por esse homem tão potente a partir de sua fé indestrutível no racionalismo científico?)parece se desdobrar em uma outra camada, de corte épico, proposta pela encenação, que transforma a repetição narrativa em objeto de reflexão histórica (por que o sono da abundância científica e tecnológica à qual nos entregamos diariamente tem produzido tantos pesadelos éticos e morais?).
“Que sacrifícios fazer e em nome de que alianças?” pergunta o espetáculo, propondo uma série de imagens muito contundentes que evocam o mundo dos ritos sacrificiais, cindidos aqui entre o sagrado e o profano. De um lado, por exemplo, há os três corpos estilizados que descem do urdimento e são acolhidos por atores em pose de Pietá. De outro, os antigos rituais de imolação dão lugar aos novos procedimentos cirúrgicos, nos quais tanto faz implantar uma válvula de vaca ou de porco no paciente “sacrificado”. Ou em que um órgão extirpado de um paciente morto pode prosaicamente se transformar em presente de aniversário de um ente querido.
Enquanto um novo corpo surge a partir do uso de novos fármacos, a velha consciência vai se tornando obsoleta em virtude de tantos anestésicos que a rodeiam. Mas o espetáculo termina apontando para uma imagem mais positiva do que essa, ao converter a distopia do indivíduo despedaçado na utopia da integridade humana, contrária à indiferença. É bem verdade que a cena em que Samantha e Sofia discorrem sobre isso ocorre em um cemitério. Mas não se pode esquecer de que prestar tributo aos mortos é cultivar a memória dos que já foram, a fim de preservar o passado e poder transmiti-lo – como promessa e aliança – aos que ainda estão por chegar.
O dia em que Sam morreu
Onde:
 Teatro Anchieta, Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque
Quando: até 23/11. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 18h.
Quanto: De R$ 12 a R$ 40.
Info: (11) 3234-3000.



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ARMAZÉM NO FESTIVAL DE EDIMBURGO 2014 


ARMAZÉM RECEBE PRÊMIO DO FESTIVAL DE TEATRO DE EDIMBURGO 2014

O DIA EM QUE SAM MORREU [The Day Sam Died] ganhou nesta sexta, 15/08 o FRINGE FIRST AWARD, um dos principais prêmios do Festival de Edimburgo oferecido há 41 anos pelo jornal The Scotsman. Em 2013, o Armazém tinha ganhado o mesmo prêmio por "A Marca da Água" [Water Stain].  


Crítica no jornal The Scotsman sobre o DIA EM QUE SAM MORREU:


FRINGE FIRST AWARD WINNER - THE DAY SAM DIED

por Joyce McMillan 

 "Se o futuro da saúde - como serviço público ou negócio privado - é uma das questões-chave de todas as democracias modernas, então o mais recente e brilhante espetáculo da Armazém Companhia de Teatro é a peça que pega o drama hospitalar pela nuca e o transforma num teatro furioso, lindo e surreal que trata da luta global entre o extremo capitalismo neoliberal e visões mais democráticas e comunitárias da sociedade.
No centro da peça - co-escrita por Maurício Arruda Mendonça e pelo diretor Paulo de Moraes - está a figura do cirurgião-chefe, um brucutu altamente qualificado e viciado em drogas, que trata seus pacientes com desprezo e acha natural que o melhor serviço de saúde seja controlado pelos ricos.
Sua vida dá uma guinada complexa, porém, no dia em que ele encontra três pessoas diferentes chamadas Sam, numa série de situações repetidas. Uma delas é o enfermeiro auxiliar de cirurgia, que tem um acesso de fúria e saca uma arma no saguão do hospital, enquanto fala sobre como um hospital devia ser justo e compassivo. Outra é a juíza de direito chamada Samantha, que precisa de uma cirurgia pra salvar sua vida, mas questiona a moralidade de furar a fila de tratamento. E a outra pessoa é Samir, um ex-palhaço que agora sofre de demência, depois de uma vida inteira divertindo as crianças.
Durante 80 minutos intensos e belos, pontuados por um entrondoso rock ao vivo, a produção de Paulo de Moraes nos guia através do mundo onírico dessas três situações, numa torrente de luz inconstante e de fúria e quietude em alternância. E no centro do espetáculo há uma série de atuações excelentes de alguns dos melhores atores do Brasil, incluindo Patrícia Selonk como Samantha e Otto Jr. como o cirurgião-chefe."



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CRITICA  de "O DIA EM QUE SAM MORREU" em Edimburgo 2014.


Three Weeks - Sexta-feira, 8 de agosto de 2014

por George Robbs

"O Dia Em Que Sam Morreu" é sombria, solitária, como um pesadelo - mas também extremamente emocionante. Parte da Temporada do Teatro Brasileiro, é a história de seis indivíduos solipsistas, divididos por sua classe social e sua comunidade. O hospital onde eles se encontram é mantido sob controle por um homem armado enfurecido, e apesar de suas vidas jamais convergirem totalmente, elas se tocam. É um estudo magistral sobre o relativismo pós-moderno e a desunião que ele promove. Visualmente vívido, com um som surpreendentemente belo e filosoficamente bem trabalhado, "O Dia Em Que Sam Morreu" faz a pergunta: num mundo onde um código de ética é tão válido e justificável quanto qualquer outro, como saber a qual deles aderir?


Fonte: http://www.threeweeks.co.uk/article/ed2014-theatre-review-the-day-sam-died-armazem-theatre-company/


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ARMAZÉM NO FESTIVAL DE AVIGNON 2014


A peça do Armazém Companhia de Teatro, "O DIA EM QUE SAM MORREU", escrita por Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, com direção de Paulo de Moraes, recebeu no dia 21 de julho, o prêmio "Coup de Coeur", em Avignon, França. Foram escolhidos 3 espetáculos que mais bateram forte no coração do Clube de la Presse de Avignon, e o espetáculo do Armazém, que representa o Brasil, está entre eles. Viva o teatro brasileiro! Abaixo resenha sobre "Sam".


AVI CITY NEWS – Avignon – 20 de julho de 2014

O DIA EM QUE SAM MORREU

Um teatro brasileiro de vanguarda, perturbador, mas um reflexo fiel de nosso mundo imperfeito.

RESUMO

O dia em que Sam morreu” coloca em jogo escolhas éticas traçando o destino de seis personagens que cruzam pelos corredores de um hospital invadido por um jovem armado. São personagens que, por suas funções, exercem poder sobre nós: médicos, juiz e artistas.


AVALIAÇÃO

A companhia Armazém, proveniente do Rio de Janeiro, nos oferece um representação do teatro contemporâneo brasileiro, com uma encenação fulgurante, cuidadosa e inovadora, de um texto que denuncia em ruptura total, tanto a situação, quanto as grandes ideias da humanidade. Com encadeamento de cenas que se sucedem e se repetem diferentemente a cada vez, com atores extremamente caracterizados e perfeitos em suas neuroses, em sua baixeza, Paulo de Moraes, o encenador, lança luz sobre o mal-estar de um país mergulhado em uma crise social e econômica. A violência, a corrupção e a manipulação descritas e representadas com uma agressividade e uma veracidade espantosas e congelantes, são os sintomas reveladores de uma sociedade instável e desorientada, à beira do abismo, que se desintegra e bascula no absurdo, muito longe da ética. O rock, tocado por excelentes intérpretes que acompanham esporadicamente o espetáculo, acentuam a ideia de violência, a ideia de revolta, porém dão lugar a uma certa visão poética desse povo de origem latina que adora viver a vida com intensidade. Uma imersão vaguardista sedutora!


Fonte:



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CRÍTICA DE TEATRO: O DIA QUE SAM MORREU

Por GISELLE COSTA

BLOG BLAH CULTURAL

01/05/2014

Nem sempre as questões que se apresentam perante nós cabem numa simples escolha. O espetáculo O Dia que Sam Morreu se propõe discutir ética, moralidade, honestidade, caráter. Temas que não podem ficar circunscritos a um sistema binário. Sutil como a pata de um elefante, a ética pisa em nós a cada trade off, nossas escolhas conflitivas. Força-nos a ter uma reflexão sobre o valor das ações sociais consideradas tanto no âmbito coletivo como no âmbito individual.
A peça joga nas mãos de cada personagem dilemas pessoais que interagem diretamente com a vida do próximo, contrapondo o desejo de cada um ao bem estar dos demais. Trabalha o jeitinho brasileiro de resolver as situações mais difíceis que por meio natural não seriam resolvidas. E mais, traz ao palco o tema dos protestos que começaram em junho de 2013 e desencadearam poucas mudanças políticas efetivas. A Cia Armazém de Teatro, um dos mais antigos e prestigiados grupos do País, colocou o dedo na ferida sócio-política do nosso país, esgarçando a ética e a moralidade.
A trama central do espetáculo se passa dentro de um hospital cuja escolha de cada personagem irá definir o destino dos demais ao se cruzarem pelos corredores. Ninguém consegue se esquivar. Vemos até onde o código moral estabelecido exerce influência sobre a subjetividade de cada um ali em cena. E conseguimos medir a efetividade dos valores normativos de nossa sociedade através dos atos de cada personagem.
A discussão entre o inescrupuloso cirurgião Benjamin, vivido pelo ator Otto Jr., e o jovem idealista Samuel, interpretado por Jopa Moraes, é como uma fratura exposta. Somos apresentados cruamente às partes antagônicas, vistas claramente, sem nuances, numa clássica dicotomia exuberante entre o bem e o mal. Ambos os atores vivenciam cada palavra do texto de forma arraigada no que seu personagem acredita. Soa forte, como golpes diretos, com a guarda baixa, deixando a cara na reta sem medo.
É como se utilizassem aquilo que acreditam como um escudo invisível. Assim nada os fere, podendo seguir adiante com suas crenças do que é correto pra si (mesmo que não seja para o restante ou inviável do ponto de vista prático). Samuel serve pra trazer à tona todo o ideal de um mundo perfeito onde tudo funciona e a justiça atinge a todos da mesma maneira. Será que (quase) todo mundo já foi como ele quando jovem e depois arrefeceu, atrelando a vida ao sistema sem questionar mais ou brigar por fatos mais justos?  Um final de luta praticamente compulsório. Afinal quem dará emprego formal a um rebelde?
Depois nos é permitido acessar outra camada. Aqui, deparamo-nos com o posicionamento mais claustrofóbico. A juíza Samantha (Patrícia Selonk) sofre praticamente uma emboscada moral de seu intrincado marido Arthur (Ricardo Martins). Emparedada, vê-se num dilema dilacerante. Vemos o sofrimento emergindo para a carne, sendo amaciado pelo álcool, o que não torna mais fácil sua escolha perante sua necessidade versus o anseio dos demais integrantes da sociedade.  Selonk transpira pela sua personagem, entrega-se de forma intensa e bela, atuando com firmeza. As trocas entre ela e Martins são eficazes, permitem delinear bem os pontos falhos do personagem Arthur e a expor os limites da magistrada.
Na enjambrada forma de fazermos escolhas, vivenciamos a não menos difícil vida de Sofia (Lisa Eiras), que faz sexo por dinheiro e cuida de seu pai Samir, um palhaço com alzheimer. Sofia, não tem uma tarefa menos difícil. Entretanto, talvez, por circunstância da vida, seja mais prática. E assim, essa questão da ética reverbere menos nela. Isso nos coloca a questão do esquecimento. Será que não se lembrar dos fatos ocorridos nos faria mais felizes?
O cenário, de Paulo de Moraes e Carla Berri, se desdobra e se mostra muito funcional, acompanhando e se encaixando no ritmo do espetáculo. Maneco Quinderé com sua iluminação enfatiza cada evento e contribui para a evolução da dramaturgia. Não se pode deixar de falar na música instrumental, basicamente levada numa só guitarra, que é executada ao vivo, sob a responsabilidade de Ricco Viana. Não só nos ajuda a entrar no clima, como explicita os sentimentos dos personagens em cena.
Ao final, temos a sobrevivência de cada um de nós posta na corda bamba da vida. Não importa se você é abastado ou desprovido de grana; pode-se chafurdar na mediocridade independente do quanto se leve no bolso ou do quantitativo de diplomas pendurados na parede. Parece cada vez mais difícil sonhar com algo que chegue perto do justo e igualitário. Só nos resta o vazio perante a impotência ao sistema. Não se lembrar de nada, como frequentemente nos referimos ao nosso país sendo uma pátria sem memória, muitas vezes pode ser solução para conseguir continuar a viver numa ilusão de felicidade. A outra única opção é morrer tentando. Qual é a sua escolha?

Fonte: http://www.blahcultural.com/critica-de-teatro-o-dia-que-sam-morreu/

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UM ESPETÁCULO SOBRE A ÉTICA

por RODRIGO MONTEIRO

BLOG CRÍTICA TEATRAL
01/05/2014


“O dia em que Sam morreu” tem o mérito de falar sobre ética sem ser um espetáculo moralista. Ao trazer à baila o assunto, sem se posicionar efetivamente, a nova produção do Armazém Companhia de Teatro sugere que a discussão deva acontecer na plateia, entre o público, cumprindo assim uma função que é paralela e melhor que o teatro ideológico já fora de moda. Contada de forma não linear, a narrativa escrita por Maurício Arruda Mendonça e por Paulo de Moraes se passa quase que inteiramente em um hospital. Da equipe médica frente a um paciente na mesa de cirurgia às relações pessoais desses personagens, tudo é oportunidade para vê-los na sanha pelo poder. Em cartaz no Espaço Armazém, da Fundição Progresso na Lapa, eis aí uma peça que mostra um olhar pessimista sobre a sociedade, mas não menos valoroso.

O cirurgião Benjamin (Otto Jr.) quer uma colocação de chefia no hospital. O Dr. Arthur (Ricardo Martins) quer antecipar a chamada para transplante de coração para a sua esposa, a juíza Samantha (Patrícia Selonk), que, por sua vez, quer o novo coração para continuar vivendo. Sophia (Lisa Eiras) quer o tratamento para o seu pai, Samir (Marcos Martins), que sofre de Alzheimer, e que, um dia, quis viver a sua vida com o circo. Samuel ( Jopa Moraes, em sua estreia como ator) quer mudar o mundo e livrá-lo da corrupção e da desonestidade. Ou seja, sejam lá quais forem os motivos que levam esses personagens a fazerem algo de errado em prol dos próprios interesses, e sejam lá os momentos em que esses interesses ficam claros para o público, em “O dia em que Sam morreu”, todos estão corrompidos. O pai abandona a filha, o doutor é conivente com os erros do chefe, a mulher faz favores sexuais, a outra faz “vista-grossa” para um privilégio, e, assim, do cirurgião que conscientemente erra a operação de seu próprio chefe ao garoto que, num estado de loucura, invade o hospital com uma arma, todos movimentam a reflexão sobre a ética.

As interpretações são vibrantes em conjunto e em individualmente, porque são cheias de marcas que aproximam a ficção do real além da narrativa. Em outras palavras, os personagens se utilizam bem da forma física dos atores de jeito que o resultado não é só um efeito de teatralidade, mas um mérito de casting também. Para citar um exemplo, a cena em que Samual invade o hospital com uma arma, além de renovar a discussão sobre ética que a peça propõe, causa enternecimento diante da ingenuidade do personagem, ainda muito jovem. Essa sensação só tem permissão para acontecer porque o intérprete é realmente alguém com pouca idade, ou seja, não é preciso um esforço do público para aceitar a proposição da peça, mas a narrativa se conta ao natural. O mesmo acontece com Marcos Martins que é um ator mais experiente. Assim, o realismo é um gênero hoje mais difícil de ser viabilizado porque, diferente do século XIX, ele concorre agora com vários outros gêneros trazidos pelo século XX. O neorrealismo de “O dia em que Sam morreu” só é possível pela forma potente com que os signos, incluindo aqueles ligados à interpretação, estão articulados.

Um dos grandes méritos estéticos da peça são o cenário de Carla Berri e de Paulo de Moraes e a trilha sonora interpretada ao vivo por Ricco Viana. De um lado, temos uma situação vazada que oxigena a narrativa sem desrespeitar a hierarquia do essencial em termos de ilustração, de outro temos uma sonorizaçãoo que valoriza a história, mas também parece convocar o espectador à reflexão.

“Sam”, do título, pode ser Samantha, Samir e Samuel e também pode ser os três. O gesto, desde aí, indica à chamada ao pensamento, à tomada de um ponto de vista, a uma posição no que diz respeito à ética, palavra tão essencial nesse mundo de hoje. Parabéns!

Fonte: http://teatrorj.blogspot.com.br/



DRAMA DA ARMAZÉM CIA DE TEATRO
PROPÕE UMA CONTUNDENTE REFLEXÃO SOBRE A MORAL

por RAFAEL TEIXEIRA

VEJA RIO
30 de Abril de 2014.

Em tempos de indignação pública com desvios éticos, o drama da Armazém Companhia de Teatro se revela da maior pertinência. Também diretor, Paulo de Moraes assina o texto com Maurício Arruda Mendonça. Na história, o ambicioso cirurgião Benjamin (Otto Jr.) é, guardadas as proporções, um Ricardo III contemporâneo: tal como o personagem de Shakespeare, não apenas tem plena noção de sua vilania como se orgulha dela. Contra ele — e a podridão dos valores que personifica — insurge-se Samuel (Jopa Moraes), enfermeiro idealista ao ponto da ingenuidade, que invade o hospital armado. Zonas cinzentas da moralidade se vislumbram entre alguns dos reféns. É o caso da juíza Samantha (Patrícia Selonk), que reluta em aceitar a ajuda do médico Arthur (Ricardo Martins) para furar a fila do transplante de coração, e da garota de programa Sofia (Lisa Eiras), às voltas com o pai doente, Samir (Marcos Martins), vítima de Alzheimer. A intrigante estrutura do texto se baseia em uma sucessão de inícios, cada um deflagrando uma trama que enfoca Samuel, Samantha ou Samir — todos apelidados de Sam. O elenco valoriza a contundente reflexão sobre a moral, aqui mais calcada na realidade, ainda que preservando a marca poética habitual do trabalho da Armazém (95min). 14 anos. Estreou em 10/4/2014.

Fundição Progresso — Espaço Armazém (120 lugares). Rua dos Arcos, 24, Lapa, ☎ 2210-2190. Quinta a domingo, 20h. R$ 40,00. Bilheteria: a partir das 18h (qui. a dom.). Até 29 de junho.



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CRÍTICA: ARMAZÉM ENFIA O DEDO NA CRISE POLÍTICO-SOCIAL


Por MIGUEL ARCANJO PRADO
(Enviado especial do R7 ao Festival de Teatro de Curitiba)

04/04/2014

Os protestos que começaram em junho de 2013 desencadearam poucas mudanças políticas efetivas – fora o não aumento da tarifa de ônibus –, mas ainda reverberam nos palcos brasileiros.
O Armazém, um dos mais prestigiados grupos do País, oriundo de Londrina (PR) e radicado no Rio, levou ao Festival de Teatro de Curitiba 2014 a estreia nacional da peça O Dia em Que Sam Morreu no Teatro Guairinha. Nela, coloca o dedo na ferida político-social brasileira. E o faz com a sensibilidade do olhar poético que é identidade da trupe, e que não deixa de ser contundente.
O espetáculo aborda os bastidores de um hospital, onde pacientes são salvos pelo dinheiro que têm, e onde reina um cirurgião inescrupuloso, dominando a todos com sua arrogância e capacidade de jogo.
Otto Jr. assume o papel cheio de potência e força bruta, uma espécie de macho alfa que paira no ar até ser contestado por um jovem enfermeiro idealista, personagem de Jopa Moraes, que começa titubeante no posto de protagonista, mas que ganha força com a evolução da encenação. Completam o elenco coeso Marcos Martins, Ricardo Martins, Lisa Fávero e Patrícia Selonk. Estas duas últimas, as mulheres do elenco, chamam tudo para si quando estão em cena. Sempre intensas. Ambas igualmente boas atrizes.
O texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, que dirige a montagem, consegue expor de forma crua o desprezo pela vida alheia quando a própria vida é posta em primeiro plano, jogando para debaixo do tapete todo discurso ético.
Detalhe para o simples e ao mesmo tempo complexo cenário de Paulo de Moraes e Carla Berri, bem como para a iluminação de Maneco Quinderé, que contribui para a evolução da dramaturgia. A música executada ao vivo, sob comando de Ricco Viana, também dá potência à obra, explicitando os sentimentos dos personagens.
O espetáculo do Armazém mostra que o problema político-social brasileiro vai bem mais além dos discursos eloquentes ou de cartazes improvisados para passeatas: ele mora no âmago da sociedade, nas relações interpessoais que estabelecemos no jogo do “jeitinho brasileiro”, no qual tudo é possível e permitido sem escrúpulos.
O modelo de civilização no Brasil é posto em xeque pela obra, que expõe suas amarras cruéis e a falta de utopia reinante na sociedade. Tal utopia é representada pelo jovem enfermeiro Samuel, que teima crer em um mundo melhor e mais justo mesmo que tudo ao seu redor diga a ele que isso jamais será possível.
Mergulhado no teatro pós-moderno, o personagem e seu drama representam o grito sonhado na geração pós-desilusão. Como num movimento cíclico, o jovem em cena representa a mesma coragem que levantou jovens 50 anos atrás contra o regime totalitário que deixou ares tenebrosos no País por 21 anos. Contudo, atitudes contestatórias estão cada vez mais em desuso nos tempos em que crianças são educadas para vencer na vida a qualquer custo.
Questionamentos como estes são levantados em O Dia em que Sam Morreu. A obra aponta que não há vencedores nem derrotados. Todos estão mortos. Sem dó, o Armazém joga na cara da plateia de classe média o quão sua sobrevivência na corda bamba da vida pode ser medíocre e desprovida de sonhos. E, por isso, vazia. Tal qual a imagem de um palhaço sem memória e de riso perdido.

Fonte: http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/2014/04/04/critica-armazem-enfia-o-dedo-na-crise-politico-social/



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"O DIA EM QUE SAM MORREU"
ACERTA EM DISCUSSÃO MATIZADA SOBRE O PODER

O espetáculo foi muito aplaudido pelo público e a boa recepção foi merecida.

Por PAULO CAMARGO

Gazeta do Povo
Caderno G – Festival de Curitiba
04/04/2014

Os hospitais são, com frequência, cenários bastante propícios para a ficção. Passam pelos seus corredores todos os tipos pessoas, com suas dores, físicas e emocionais, tragédias e esperanças. Nos bastidores, povoados por médicos, enfermeiros e funcionários que exercem as mais diversas funções, também rola de tudo. Casos de amor não são raros, brigas de egos muito menos.
Faz sentido, portanto, que Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes tenham optado por construir o texto de O Dia em Que Sam Morreu, nova montagem da Cia Armazém de Teatro, a partir das relações de poder que se constroem no dia a dia de um estabelecimento como esses, que funciona como um microcosmo, onde muitas das tensões no mundo contemporâneo marcam presença, e por vezes eclodem com força potencializada.
O espetáculo, que fez sua estreia nacional na noite de quinta-feira no Guairinha, dentro da mostra contemporânea do Festival de Curitiba, foi muito aplaudido pelo público que se não chegou a lotar, encheu o teatro. A boa recepção foi merecida.
Seis personagens têm suas vidas cruzadas em um dia de fúria no hospital onde tudo se passa. No centro da trama está o médico Benjamin (Otto Jr.), um sujeito narcisista, sedento por poder, que não mede esforços para conseguir o cargo de cirurgião-chefe. Tem como amigo, mas não exatamente um aliado passivo, Arhur (Ricardo Martins), que também vive conforme padrões éticos duvidosos, flexíveis demais. Sua mulher, a juíza Samantha (Patrícia Selonk), é um contraponto a essa falta de escrúpulos. Mas seu coração pode parar a qualquer momento e ela precisa de um transplante.
Outra pedra no sapato de Benjamin é Samuel (Jopa Moraes), um jovem enfermeiro que, ao testemunhar as sucessivas demonstrações de falta de caráter e decoro do cirurgião, entra em surto. É tomado por tamanha indignação que resolve fazer justiça com as próprias mãos: invade o hospital e coloca o médico na mira, exigindo que ele faça tudo que o rapaz julga certo, a começar por tratar pacientes do SUS, pobres e desvalidos, com a mesma atenção dos ricos e poderosos.
Completam o sexteto Sophia (Lisa E. Fávero), uma jovem prostituta que sustenta e vive com um pai que mal conheceu, o palhaço Samir (Marcos Martins), portador da doença de Alzheimer.
Tão relevante quanto a história que O Dia em Que Sam Morreu, conta, é a forma com que o texto é construído, a maneira como o tempo é manipulado. A mesma situação, em cujo centro está o confronto entre Benjamin e Samuel, é narrada de diferentes perspectivas, com desenlaces distintos.
O que fica é uma discussão matizada, em que tanto o cinismo de Benjamin quanto o idealismo radical de Samuel, assim como a flexibilidade moral de Arthur, são expostos, questionados, sem que a peça assuma um tom maniqueísta.
Percebia-se na apresentação de ontem uma certa hesitação nas interpretações dos atores, sobretudo nos primeiros dez, quinze minutos da peça. Possivelmente em decorrência da tensão natural de se tratar de uma estreia. No conjunto, entretanto, a direção ágil de Paulo de Moraes e a inventividade do texto, sobretudo na forma, se impuseram.

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/festivaldecuritiba/conteudo.phtml?id=1459574