quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

PAIXÃO DE CARNAVAL

Quando os carnavais eram nos clubes, as marchinhas e os sambas contagiavam de alegria os jovens casais das famílias da alta sociedade londrinense. Mas como todo amor de carnaval é passageiro, sonhos e desilusões machucavam o coração dos foliões. Especialmente aqueles que não nasceram em berço de ouro.

Naquele sábado de carnaval, Zé Ricardo estava com o pé apoiado na parede de uma Lanchonete na esquina da Rua Sergipe com Hugo Cabral, trajando uma surrada fantasia de leão, depois de ter desfilado na escola de Samba Chão de Estrelas. Zé Ricardo parecia sereno tomando doses de gim sorvidas de uma mamadeira que trazia dependurada no pescoço, mas, por dentro, seu coração rugia de raiva por ser um durango e não ter um puto no bolso. Isso o impedia de se encontrar com Soninha, uma garota apaixonante, que costumava economizar grana para pular o carnaval no Canadá Country Club, que cobrava uma nota preta pelos convites. O que o dilacerava não era porque Soninha tinha namorado, mas o fato de ela ter prometido a Zé Ricardo que naquele carnaval ela ia ser só dele, e que os dois teriam sua grande noite de amor nos fundos do Canadá, mais precisamente do lado da piscina semi-olímpica. O samba, o gim, a ginga, o suor, a rua, a noite estrelada tudo contribuiu para que Zé Ricardo tomasse a decisão: “– Vou entrar no peito e na raça!”.
E lá foi Zé Ricardo fantasiado pela Rua Sergipe em direção à Avenida Juscelino Kubitschek onde seguiu reto até o clube. Descendo o declive da entrada do Canadá olhou para cima e viu no salão a noite carnavalesca em seu auge, brilhos esfuziantes, rapazes e garotas elegantemente fantasiados, o que contrastava com a sua pobre aparência de leão de circo. Indo rumo à portaria, Zé Ricardo furou fila, empurrou aqui e ali, desviou-se de um bloco de bebuns fantasiados de bebês, e foi peitar o porteiro. Já chegou fazendo cara de choro: “Olha, seu porteiro, meu pai acaba de ter um enfarte. Minha irmã tá aí dentro e preciso levar ela pra casa agora! Eu esqueci a carteirinha, me deixa entrar pelo amor de Deus!” O porteiro vacilou. Sabia que poderia ser lorota, mas deixou Zé Ricardo entrar: “–Vai que o safado é filho de algum milionário”, pensou.
Zé Ricardo entrou se sentindo 007 disfarçado de leão. Subiu a escadaria de acesso ao grande salão saltando de dois em dois degraus. Ney e seu Conjunto executavam marchinhas maviosas. No meio da imensa multidão não conseguia enxergar Soninha. Aliás, não conseguia entender porque a massa dos foliões rodava só em sentido anti-horário pelo salão. Foi numa dessas voltas que Zé Ricardo reconheceu Soninha. Vinha fantasiada de uma sensual ovelhinha, mas era enlaçada na cintura pelo braço cabeludo de um cara grandão vestido de pastor de rebanho, com barba postiça e cajado de isopor. Zé Ricardo piscou para Soninha, mas ela virou a cara. “Tá dando uma de fiel”, pensou Zé Ricardo, excitado com o jogo, pois dali a pouco estaria fazendo amor com aquela gatinha malandra.
Mas a hora foi passando e nada de Soninha se aproximar ou dar um sinal que fosse. Quando ela se encaminhou para o sanitário, Zé Ricardo a interceptou, segurando-a pelo braço. Soninha o repeliu com irritação: “– Tira a mão! A família do Marcos tá sentada naquela mesa ali, eles podem me ver com você!” Zé Ricardo cobrava de Soninha o cumprimento da promessa que ela mesma fizera a ele, mas a garota foi cruel: “Deus que me livre! Olha só pra tua fantasia! Detesto pobre! E tem mais, hoje eu fui pedida em casamento. Estou noiva, entende? Noiva de um milionário. Tchau, trouxa!” E saiu rebolando.
De volta ao salão, humilhado e ressentido, Zé Ricardo não teve dúvidas. Virou uma dose generosa de gim. Esperou que o casal chegasse bem perto de si. Quando ficou muito próximo de Marcos, Zé Ricardo agachou, passou a mão no chão e, num golpe veloz, entupiu a boca do pastor de confete. Em seguida catou o seu cajado e quebrou na cabeça de Marcos. O grandalhão engasgou feio. E enquanto familiares acudiam o recém-noivo, centenas de foliões assistiam estupefatos um leão agarrar uma ovelha e rasgar-lhe toda fantasia, até expor completamente toda a beleza de sua nudez.
Seguranças agarraram o leão e o tiraram do salão. Lá fora, entretanto, longe do olhar dos sócios, foram pra cima dele com violência, mas Zé Ricardo era bom de porrada e saiu no braço com quatro ao mesmo tempo. O leão ferido derrubou todos. Depois subiu a ladeira do Canadá limpando o sangue da cara na fantasia. Continuava fulo da vida por ter sido xingado de pobre, e já que era pobre mesmo, não queria nunca mais saber de clube de bacana, nem de transar com cocotinha. Decidido, tocou a pé pela Rua Canudos, pegou a Humaitá à esquerda, tomou pinga na Lanchonete Bolonhesa, cruzou a Higienópolis, e se mandou pro Moringão. Entrou no carnaval popular daquele ginásio de esportes e se sentiu em casa, aconchegado pela alegria carnavalesca verdadeira, a exaltação do desejo sem máscara dos pobres e dos feios como ele.
Quando Zé Ricardo deu por si, o dia raiava. Totalmente mamado, ele seguia dançando, chorando e cantando antigos sambas pela Rua da Lapa, abraçado a um belíssimo travesti.

(Foto do casal de Mestre-sala e Porta-bandeira do carnaval de rua londrinense extraída do livro "Presença Negra em Londrina" de Idalto José de Almeida)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O HOMEM-MARIPOSA



No final da década de 60 uma família londrinense viveu um longo período de sofrimento, motivado por acontecimentos verdadeiramente inexplicáveis, entre eles a aparição de um asqueroso homem em forma de mariposa.

Dona Idalina e seo Firmino moravam na Rua Paranaguá por volta de 1966. O azul da casinha de mata-junta ornava com o verdinho do gramado do imenso jardim cortado por uma comprida e sinuosa passarela de vermelhão cercada de margaridas, que ia do portão até a varanda. O casal tinha muito amor às duas filhas Celimar e Maricel, de 10 anos, conhecidas também como as Gêmeas da Paranaguá.
A vida era um mar de rosas. Seo Firmino era motorista do Educandário. As gêmeas brincavam o dia todo, enquanto dona Idalina, trabalhadeira, cozinhava, limpava, lavava, passava e ainda costurava. Naquele tempo aquele trecho entre as ruas Tupi e Pio XII era um pedacinho do paraíso, e o silêncio da tarde era somente rompido por uma buzina de mão avisando que a Kombi do padeiro estava passando na rua.
Certa madrugada caiu uma tempestade. Dona Idalina não levantou da cama. Ardia em febre, delirava, falava obscenidades nunca ouvidas, e se recusava a ir ao Hospital Evangélico por mais que seo Firmino implorasse. Dois dias depois a febre baixou, mas a estranha doença de dona Idalina não arredou pé e foi ficando nela como uma praga. A vida da família parou por completo. A casa ficou de pernas pro ar. Nos finais de tarde os vizinhos podiam ouvir o choro amargo do pai e das gêmeas em torno da cama da mãe doente.
Com o passar do tempo o jardim e o quintal ficaram abandonados, o mato alto. A casa ganhou ares de luto fechado. Até a tinta a óleo da parede ressecou formando bolhas que as gêmeas furavam com agulha. Pra piorar, abatido e displicente, seo Firmino acabou sendo demitido.
Então aconteceu um fato estranho. Certo dia, ao cair da noite, as gêmeas se demoravam brincando no quintal sem atender aos chamados do pai de que entrassem. Maricel não saberia dizer se passou muito tempo ou se foi logo depois de seu pai chamá-las, quando viu algo se mexendo perto do varal que ficava no fundo do quintal, justo naquela parte onde as duas mais tinham medo de ir quando escurecia.
Maricel, mais atiradinha, agarrou a mão de Celimar e correu direto pro lugar onde tinha visto o vulto. Quase desmaiaram. Flutuando à meia altura as duas viram um ser alto, parecido com uma mariposa de cor cadavérica, com grandes asas nas costas e um par de olhos vermelhos. As asas batendo emitiam um som drapejante de trapos, e o cheiro que vinha era de cobertor velho, mijado e puído. Disso jamais se esqueceram.
O homem-mariposa olhou para elas com seus olhos de brasa, depois saiu voando para cima. A partir daí Maricel e Celimar começaram a ter visões e a predizer fatos que iriam acontecer. Não erravam nada. Um dos parentes, pessoa fútil e insensível, até se atreveu a perguntar se o Londrina seria campeão naquele ano, mas furiosas, as gêmeas soltaram um som estridente que aterrorizou os presentes. Mas a clarividência era um fardo. Muitas vezes as pobrezinhas choravam apavoradas com as imagens de tortura e morte que enxergavam no futuro não distante do país.
Com a alma destroçada pela doença da esposa que já se arrastava há um ano, e agora padecendo com a anormalidade das filhas, seo Firmino buscou socorro ao professor Sebastião Mendonça, psicólogo, mestre em Hipnose, a quem confiou o caso das gêmeas. Logo na primeira sessão ele conseguiu descobrir que não havia motivo para duvidar de que Maricel e Celimar haviam visto o tal homem-mariposa. As duas, serenas, demonstravam estar falando a verdade. Entretanto o professor se surpreendeu ao ouvir que elas já sabiam que ele viria ali com a missão de espantar o mal que se abatia sobre aquela família.
Foram Celimar e Maricel quem o instruíram. Era perto de umas sete da noite da sexta-feira. As gêmeas conduziram o professor Sebastião até o quarto onde dona Idalina jazia acamada. Entraram. Cada uma das gêmeas se posicionou dos lados da cabeceira da mãe. Seo Firmino, disseram, deveria ficar postado aos pés da esposa. Então deram o sinal ao professor. Ele ajoelhou com dificuldade e puxou um pires negro onde estava uma enorme mariposa branca com um alfinete fincado ente os olhos vermelhos. O professor Sebastião foi em direção à janela e a abriu deixando o ar do jardim invadir o aposento há tanto tempo trancado. Em seguida, retirou com cautela o alfinete da cabeça do inseto. A mariposa tremeu as grandes asas, então, veloz, voou embora mergulhando no escuro da noite morna.
Seo Firmino e as gêmeas começaram a chorar quando viram dona Idalina levantar-se, arrumar-se na penteadeira e ir direto para o fogão preparar o jantar. Como se nada tivesse acontecido.

[Publicado na Folha Norte em janeiro de 2010.]

A ilustração acima é de autoria do jovem desenhista e grande amigo João Paulo, que mantém o blog Vidro Embaçado (veja ao lado), e que me presenteou com sua visão do Homem-Mariposa quando lhe enviei o conto em caráter inédito.